• Redação - 23/05/2024 12:07 || Atualizado: 23/05/2024 12:13

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal aprovou, nesta quarta-feira (22), o projeto de lei (PL) nº 3.127/2019. O texto prevê a possibilidade de castração química com hormônios, sem efeito permanente, que pode ser interrompido por razões médicas, se necessário. O objetivo de conter a libido e a atividade sexual para reincidentes nos crimes de estupro, violação sexual mediante fraude e estupro de vulnerável. Ao condenado que aceitar se submeter à castração química, será concedido o livramento condicional ou a extinção da pena.

 Para o pós-doutor em Direito Penal e Criminologia, advogado Lucas Villa, a proposta da castração química ou cirúrgica aprovada pelo Senado é extremamente problemática em diversos sentidos. “Trata-se de projeto de contornos claramente inconstitucionais. Eis algumas razões. Embora o projeto sugira que não se trata de pena, mas de requisito para concessão de livramento condicional, a verdade é que a proposta operará como forma de coagir o condenado por crimes contra a liberdade sexual a aceitar tratamento cruel, degradante e de caráter perpétuo, o que é vedado pelo art. 5º, inciso III, da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, julgando a ADPF 347, reconheceu que o sistema prisional brasileiro opera em estado de coisas inconstitucional, violando de forma massiva direitos fundamentais. Nesse cenário, o condenado seria obrigado a escolher entre duas violações a direitos fundamentais: ou vai para o sistema prisional, que opera de forma desumana e degradante, ou se submete a castração química ou cirúrgica, que, na prática, operará como pena perpétua e castigo corporal, e violará uma dimensão existencial fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade humana: a sexualidade”, explica.

Ainda segundo Villa, o projeto viola a dignidade da pessoa humana e o princípio da humanidade. “Castra-se animais, não pessoas. O direito à integridade física e ao próprio corpo é indisponível, de modo que o consentimento do apenado em relação ao "tratamento" não é suficiente para dar a ele contornos de legalidade. Seria situação análoga à de uma mulher fazer contrato com seu marido autorizando-o a dispor do corpo dela, inclusive dando-lhe o direito da espancá-la uma vez por semana, por exemplo. O consentimento de alguém não é suficiente para permitir que o Estado ou outro alguém viole sua integridade corporal, pois se trata de direito indisponível. É por isso que não podemos, por exemplo, vender nossos órgãos, embora tenhamos direito sobre nosso próprio corpo: é direito indisponível”, continua o advogado. O advogado também defende que em caso de crimes violentos como o estupro, simplesmente neutralizar a libido não garante que não serão praticadas pelo indivíduo posto em liberdade outras formas de violência, inclusive contra a mulher. “Que tipo de frustrações e recalques se sedimentarão na psiqué do sujeito de quem se retirou, repentimanente, uma importante dimensão da vida como a sexualidade? Esse sujeito tenderá a ser mais ou menos violento após isso? Não me parece que hajam estudos e dados científicos suficientes embasando criminologicamente a proposta, que parece lastreada em achismo. O legislador acha que com a castração química ou cirúrgica reduzirá índices de violência, mas não há levantamento de dados ou pesquisas empíricas levadas a cabo por cientistas especialistas no tema que justifiquem essa suposição”, argumenta.

Outro ponto questionado e analisado pelo jurista, diz respeito a preocupação em relação a condenação de inocentes, sobretudo como mais um mecanismo de descriminação racial. “ O Brasil, com a inserção de dispositivos dessa natureza, vai na contramão da história do ocidente civilizado, regredindo a formas de tratamento criminal que atuam sobre o corpo do sujeito. A pena corporal é tipicamente medieval. A modernidade tem afastado esse tipo de punição da esfera da racionalidade penal. Trata-se de mecanismo de biopoder que tende, inclusive, a ser utilizado de forma seletiva e com grande margem para erros judiciais. Quantas condenações de jovens negros inocentes ocorrem na justiça brasileira? Quem será o público alvo desta biopolítica de neutralização de sexualidades? A que ponto esse dispositivo, a longo prazo, poderá ser convertido em uma prática de eugenia, infertilizando as populações jovens e negras da periferia? Veja-se, por exemplo, a quantidade de condenações a pena de morte de jovens negros inocentes desmascaradas pelo Innocence Project nos EUA. A Suprema Corte Norte-Americana, em 1972, chegou inclusive a declarar a inconstitucionalidade da pena de morte no estado da Geórgia, por concluir que havia grande quantidade de condenações de inocentes e clara discriminação racial na forma como o instituto era empregado”, finalizou.

O projeto de lei, nos casos de crimes sexuais também prevê aumento de um ano da pena mínima. Dessa forma, a pena mínima para o crime de estupro passa a ser de oito anos, a de violência sexual mediante fraude para quatro anos, e a de estupro de vulnerável passa a ter pena mínima de dez anos de reclusão. Por ter caráter terminativo, a matéria segue direto para análise da Câmara dos Deputados, sem passar pelo plenário do Senado, a menos que seja apresentado recurso. O placar foi de 17 votos favoráveis e três contrários. O projeto tem autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) e foi relatado, na CCJ, pelo senador Angelo Coronel (PSD-BA).